Brasil, um lugar de fala!


Paulo Costa Lima
De Salvador (BA)

Voc? j? leu a Interpreta??o dos Sonhos, de Freud? L? dentro tem um relato sobre o 'Sonho de Irma'. Se n?o me falha a mem?ria trata-se de um sonho com sua cunhada. Pois ?, h? uma inje??o no sonho, e uma garganta exposta, com pintas de poss?vel inflama??o, e ? o Dr. Freud que aplica a inje??o. Ent?o, conte?do sexual latente em fam?lia n?o ? coisa nova quando Nelson Rodrigues afirma que "todo homem merece uma noite com a cunhada".

De um lado o ?mpeto germ?nico de entender e classificar tudo, de revelar o sentido dos sonhos, a ci?ncia dos sonhos. Do outro, uma refinada esculhamba??o que celebra uma curiosa flexibilidade de limites - ? flexibilidade ou ? estupro mesmo?

Eu continuo preferindo falar em flexibilidade, mesmo de forma ir?nica. Vale observar que Nelson Rodrigues n?o recomenda comer a cunhada todos os dias - apenas uma noite. E que escolha preciosa da palavra 'merece'. Fico pensando que esp?cie de merecimento ? esse... Quantos sentidos essa formula??o acumula?

? bem verdade que a no??o de 'identidade cultural' acabou pagando um pre?o pela super exposi??o e quase banaliza??o depois de Stuart Hall, na d?cada de 90. Mas n?o os fen?menos que recobria, e recobre. No caso, a plasma??o de uma perspectiva cultural que atua sobre todos, e em especial sobre a cria??o. Talvez, algo que seja melhor entendido como um lugar-de-fala do que como um estilo.

Nem sempre nos damos conta de que a irrever?ncia de um Machado de Assis autorizando o protagonismo de um mort - o nosso estimado Quincas Borba, para quem a tumba foi um novo ber?o -, segue por linhas semelhantes. Habitamos um lugar-de-fala desconstrutivo, galhofento, ?vido por afirmar que a ordem simb?lica dos centros do mundo aqui n?o vale, ou simplesmente n?o existe.


O escritor Machado de Assis (foto: Divulga??o)

Ora, as principais queixas (sint?ticas) recentes sobre o modernismo s?o:

a) seu ascetismo e autoritarismo - sempre centrado na cr?tica da representa??o;
b) sua teleologia est?tica, sempre pescando o mais novo como ideal de sentido;
c) seu minimalismo t?pico ou 'economia de meios';
d) o culto do g?nio ou do vision?rio - e a valoriza??o dos repert?rios can?nicos;
e) as exig?ncias n?o-prazerosas feitas ? audi?ncia.

Um jogo divertido ? ver como cada uma dessas linhas de s?ntese encontra (ou n?o) refra??o na produ??o brasileira. Se por um lado celebramos um g?nio como Villa-Lobos, por outro, dificilmente poder?amos classific?-lo como rigidamente ancorado numa teleologia est?tica, ou apontar com facilidade seu lado minimalista; ou mesmo represent?-lo como vision?rio (no sentido dado ? palavra pelo povo do norte). E muito menos essa hist?ria de ceder ?s exig?ncias n?o-prazerosas com rela??o ? audi?ncia...

Avan?ando algumas d?cadas, vamos nos ver em plena execu??o da obra 'Santos Football Music' de Gilberto Mendes. A obra apaga os limites entre a m?sica de vanguarda (anos 60/70) e o futebol brasileiro. A sala de concerto vira campo de futebol, com torcida, charanga, gritos, vaias, mas tamb?m uma s?rie de sonoridades t?picas das texturas modernas - glissandi, clusters etc. Minimalismo, nunca. Ascetismo, nem pensar. Teleologia: at? sim, mas muito transformada pela hibrida??o. Afinal, como entender nosso modernismo?

H? uma no??o cultivada pela psican?lise da cultura, que pensa o Brasil a partir da dificuldade de implementa??o de uma ordem simb?lica unificada em torno de uma refer?ncia paterna est?vel. Todos os agrupamentos humanos que constru?ram o Brasil tiveram que lidar com um afastamento radical de sua ordem simb?lica de origem. Os ?ndios pelo simples exterm?nio, os negros pela escraviza??o, mas tamb?m os portugueses, assumindo uma posi??o completamente distinta daquela da Metr?pole.

Muitas coisas no Brasil seriam conseq??ncia dessa frouxura de la?o com a dimens?o da Lei simb?lica, da ordem, do respeito ?s regras, da articula??o social - e tamb?m pelo lado da cultura, a celebra??o da flexibiliza??o dos limites, dos repert?rios, o tal lugar-de-fala do qual falamos.

Ocorre que com a emerg?ncia daquilo que vem sendo chamado de p?s-modernismo, no ?mbito do processo de globaliza??o e capitalismo cultural, tudo que se v? ? derretimento de limites, evapora??o de narrativas mestras, prazer imediatista etc... Os psicanalistas chamam isso de queda da fun??o simb?lica do Pai.

Mas n?s, que sempre tivemos essa fun??o comprometida pelo caos e viol?ncia da coloniza??o, vivemos agora (e sempre) um paradoxo todo especial: fomos p?s-modernos mesmo antes do modernismo. Como ? que pode??????


Paulo Costa Lima ? compositor. Bacharel e Mestre (University of Illinois), Doutor (USP e UFBA). Professor de Composi??o e An?lise - UFBA. Pesquisador-CNPq. Membro da Academia de Letras da Bahia. Apresenta??es de sua obra musical (em 2010) incluiram festivais no Brasil, China, Su?cia, Estados Unidos e Fran?a. Outras informa??es: www.paulocostalima.wordpress.com
Fale com Paulo Costa Lima: paulocostalima@terra.com.br Opini?es expressas aqui s?o de exclusiva responsabilidade do autor e n?o necessariamente est?o de acordo com os par?metros editoriais de Terra Magazine.
 

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