
De Salvador (BA)
Tenho coisas a dizer sobre o Mardi Gras, o carnaval de New Orleans, prometi faz tempo, na primeira vez que assinei esta coluna. Sobre o carnaval baiano, assunto das duas ?ltimas colunas, outras e muitas palavras tenho a mim mesmo prometidas para esta coluna. Tudo adiado.
? que hoje quero escrever alguma coisa sobre futebol. E isto por conta da despedida, ontem, de Ronaldo Fen?meno da Sele??o Brasileira.
Sou meio banana mole. Choro em muitas situa??es. Chorei ontem quando vi Ronaldo pela ?ltima vez com a camisa amarela da Sele??o Brasileira. Lembrei da despedida de Pel? - n?o lembro, mas, na altura, devo ter chorado. Das duas despedidas de Pel?, em julho 1971. A primeira, em S?o Paulo, no Morumbi, no empate de 1 x 1 com a ?ustria, com um gol dele. A segunda, no Rio de Janeiro, no Maracan?, 2 x 2 frente ? Iugosl?via. E lembrei, tamb?m, de algo que me aconteceu faz tempo e que relato a seguir.
O Reino da Suazil?ndia, uma das ?ltimas monarquias em ?frica, ? um pequenino pa?s montanhoso na regi?o Austral do continente, encravado entre Mo?ambique e a ?frica do Sul. Em princ?pios de 1983, vindo de Maputo, capital de Mo?ambique, cruzei de carro a fronteira em dire??o a Mbabane, capital do reino suazi. Logo ap?s atravessar o posto da imigra??o, parei num pequeno armaz?m, uma biboca de beira de estrada. Pedi um refrigerante. Do lado de dentro do balc?o apenas um velho suazi que mal me olhou, entretido que estava em esconder-se do calor. Quando retirei do bolso o dinheiro para pagar a despesa, veio junto o passaporte brasileiro. Verde-escuro, o documento chamou a aten??o do velho, acostumado que estava ao azul dos passaportes mo?ambicanos. Em ingl?s, l?ngua oficial do pa?s, perguntou-me de onde eu era.
- Do Brasil, respondi-lhe.
Imediatamente, o velho levantou-se, veio em minha dire??o, tomou minha m?o e come?ou a gritar:
- Brasil! Brasil! Pel?! Pel?!
Ent?o, puxou um banco, convidou-me a sentar e contou-me, visivelmente emocionado, que vira o Santos derrotar o Benfica por 5 x 2, com uma exibi??o de gala de Pel?, que marcou 3 gols, na final do Mundial Interclubes, em 1962, em Lisboa. Encantara-se, desde ent?o, pelo Brasil. Claro, por conta de Pel?, do futebol.
N?o quis receber pelo refrigerante. Ficava por conta de Pel?. E arrematou, na despedida:
- Pel?, sim, este ? um verdadeiro rei.
Confesso que, ainda que surpreso com a rea??o do velho suazi, n?o cheguei a me dar conta do significado do ocorrido. Segui viagem.
S? muitos anos depois, j? de volta ao Brasil, ap?s os onze longos anos vividos em Mo?ambique, a ficha caiu. Apaixonado por futebol, torcedor doente do Esporte Clube Bahia (meu tricolor, n?o posso deixar de lembrar, foi campe?o da Ta?a Brasil de 1959, ganhando na final, justamente, do Santos de Pel?, do time que encantaria o suazi na vit?ria sobre o Benfica anos depois), jamais parara para pensar sobre o futebol. Ir ? Fonte Nova (o est?dio projetado pelo arquiteto Di?genes Rebou?as, inaugurado em 1951 e que foi demolido gra?as ? insensibilidade dos governantes, mais interessados na Copa de 2014 do que na preserva??o de um dos mais importantes marcos da arquitetura moderna da Bahia), gritar "ba?a, ba?a, ba?a" em meio ? torcida tricolor, bater uma bolinha na rua ou na quadra do col?gio, era mais que suficiente, dispensava-me de pensar, de refletir sobre o futebol.
Sim, pensar sobre futebol. Compreender que sermos o pa?s do futebol ? algo que est? acima das mazelas que campeiam para al?m das arquibancadas e das quatro linhas do gramado - algo que CBF alguma, que cartola nenhum, jamais ir?o compreender.
O futebol ? um patrim?nio da cultura brasileira. Sim, patrim?nio cultural. ? um dos marcos mais vivos, vibrantes, da cena cultural brasileira, muito embora seja tratado, com o benepl?cito oficial do governo, como se apenas de um grande neg?cio se tratasse. Ali?s, futebol e carnaval - este, outra joia rara da cena cultural brasileira e tamb?m outro grande neg?cio -, talvez por serem fen?menos marcadamente populares, n?o conseguem ser objeto dos cuidados que merecem todo e qualquer patrim?nio da cultura. Puro ran?o elitista com que muitas manifesta??es da cultura popular s?o vistas no Brasil, n?o tenho d?vidas.
E foi exatamente isso que o velho suazi me ensinou: ver o futebol como express?o cultural, como um dos gestos mais grandiosos da aventura brasileiro, uma contribui??o genial para o cesto de alegrias do planeta. N?o fora Pel?, Ronaldo e tantos outros artistas da bola, n?o fora o futebol, jamais o Brasil ocuparia lugar no afeto daquele homem, no imagin?rio de tantos mundo afora. Obrigado, Pel?. Obrigado, Ronaldo.
P.S. Uma leitura indispens?vel para quem queira comprender o lugar do futebol na forma??o s?cio-cultural brasileira: "Veneno rem?dio: o futebol e o Brasil" (Companhia das Letras, 2008), de Jos? Miguel Wisnik. Mais que um livro, um gol de placa.
Paulo Miguez ? doutor em Comunica??o e Cultura Contempor?neas. Atualmente ? professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ci?ncias da UFBA e coordena o Programa Multidisciplinar de P?s-Gradua??o em Cultura e Sociedade (UFBA). Foi assessor do ex-ministro da Cultura Gilberto Gil e Secret?rio de Pol?ticas Culturais do Minist?rio da Cultura entre 2003 e 2005.Fale com Paulo Miguez: paulomiguez@terra.com.br Opini?es expressas aqui s?o de exclusiva responsabilidade do autor e n?o necessariamente est?o de acordo com os par?metros editoriais de Terra Magazine.