Estou fora em viagem por uns dias, de modo que separei uma cr?nica sobre o filme Embriagado de amor, que saiu no meu livro Confiss?es de um comedor de Xis/L&PM. Tome um gole.
O mundo ? um lugar in?spito para se viver. N?o era para ser, mas ?. E n?o era para ser porque a compreens?o que temos sobre as coisas, os avan?os tecnol?gicos e cient?ficos e a pr?pria riqueza que vem de gra?a e nos ? dada pela natureza j? seriam suficientes para uma vidinha boa por aqui. S? que n?o ? assim. H? uma esp?cie de neurose coletiva que morde nossas coxas, explode os intestinos, rebenta nossos c?rebros. ? o caos. Violento, despudorado, incompreens?vel. E essa sociedade neurotizada atenta contra si o tempo inteiro. Atenta com o que resta de singular no homem. ? o supl?cio da submiss?o coletiva. Todos dan?am a mesma rumba. Todos somos ref?ns da mesma ordem.
Sendo assim e em raz?o disso, ou apesar disso, me encontro num shoping center. ? a loucura miniaturizada. Eu sou o centro do meu mundo, mas meu mundo n?o ? nada diante desse outro. Eu sou um el?tron cujo n?cleo onde fa?o a rota??o ? meu inimigo. Vou ao cinema. O bilheteiro fala atrav?s de um vidro a prova de sorrisos e com a voz do Hal. N?o compro pipoca, nem guaran?. N?o gosto do barulho. N?o gosto de ruminar em p?blico. Ser? que eu sempre fui assim? A maioria, entretanto, compra. Sou ref?m da minha n?o-escolha. Melhor seria se tivesse comprado, pelo menos n?o teria raz?o para me queixar.
Eis o filme, raz?o de eu estar ali, t?o distante da minha casa protegida. Embriagado de Amor. Paul Thomas Anderson. O truque do cinema, o truque sujo da mentira a 24 quadros funciona novamente. Vejo-me c?mplice da id?ia. Personagem, espectador, testemunha, v?tima. O filme ? sobre esse mundo in?spito de que falei no in?cio. Dessa neurose sem fim, que nos envolve feito uma n?voa infinita. N?o h? cura. Mas h? paliativo, creia, acredite, confie. O paliativo ? o amor. Com suas formas estranhas e dobraduras imperfeitas. ? disso que trata o filme. Sobre o ser humano solit?rio ? procura de um sentido nesse universo indiferente. O sentido da vida ? o amor. O sentido da vida ? o amor, repito num fio t?nue de pensamento sem voz.
O filme termina e eu ali, embriagado. Quantos pontos na carteira? Assim que a luz ? acesa escuto o primeiro muxoxo, uma fileira acima: "ho- rr?-vel". E outro: "Nem me fala". E mais outro, uma fila abaixo: "Eles chamam isso de com?dia?". N?o adianta, penso eu, voc?s n?o podem comigo. Eu amo o mundo, a vida, o Bush, a novela das oito, das seis e o Show do Milh?o. Eu amo voc?s e suas pipocas barulhentas, eu amo esses coment?rios nojentos sobre aquilo que eu amo. Eu estou b?bado, embriagado, pleno de amor.
Jos? Pedro Goulart ? cineasta e jornalista.
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