Do Recife (PE)
Fui ao vel?rio de uma amiga. A morte e o sepultamento sempre tiveram seus rituais e teatros, com as particularidades de cada povo e civiliza??o. Minha amiga sofria de doen?a cardiovascular grave, fez v?rias cirurgias, colocou pr?teses nos vasos, tomava caixas de medica??o e j? completara oitenta e quatro anos. Teve uma parada card?aca, deu entrada quase sem vida numa emerg?ncia, foi levada a uma UTI, entubada e reanimada sem sucesso. Esse ? o primeiro ato.
O segundo ato. O cemit?rio numa colina possui ?timas instala??es, t?mulos cobertos de grama, l?pides planas. Parece um campo de golfe que resvala em despenhadeiros. A altura sem obst?culos permite que se veja um por de sol inesquec?vel. Tudo de bom. Os familiares sentem-se apaziguados e assumem um comportamento discreto, sem excessos de choro e lamentos. Acreditam que seus mortos debaixo da terra descansar?o na paz eterna.
No momento da despedida, levaram o corpo a um espa?o amplo, sem s?mbolos religiosos, com uma mesa coberta de toalha de renda, onde se celebraram as ex?quias - o corpo foi recomendado a Deus por um padre, dentro do ritual cat?lico. O caix?o com a morta ficou de frente para o altar improvisado, entre filas de cadeiras. O ambiente era o de uma igreja, sem religi?o definida. As coroas de flores descansavam aos lados, a tampa do caix?o fora removida para que todos pudessem olhar pela ?ltima vez a que se despedia desse mundo. Terceiro ato.
Cobrem os mortos com flores e deixam apenas o rosto de fora. N?o sei de onde veio o costume. Houve tempo em que se procedia assim apenas com as crian?as, os anjinhos. O padre sacode ?gua benta na morta, nos familiares e em todos os presentes. J? n?o usa o hissope para aspergir, mas um tubinho pl?stico bem ao gosto da igreja contempor?nea. Os judeus n?o deixam seus mortos expostos, eles s?o cobertos e deixados num lugar ? parte. N?s temos o mau gosto de olhar de cara a ?ltima fei??o da morte.
Minha amiga desejou ser cremada e a fam?lia atendeu-a. Nada de retornar ? terra de onde veio, nem ser esmagada por mausol?us descomunais como os de La Recoleta, em Buenos Aires, ou os do P?re-la-chaise, em Paris. Nada do lento processo de decomposi??o, entregue a bact?rias e microorganismos do solo ou ? a??o corrosiva do tempo. Em seis horas de forno, necess?rias ao aquecimento a uma temperatura m?xima e ao desaquecimento, o corpo, as roupas, as flores e o caix?o desprovido das al?as met?licas se transformam num punhado de cinzas. Forno cremat?rio. N?o gosto desse nome porque me traz ? mem?ria outros fornos de passado sombrio, campos de concentra??o.
?ltimo ato. Levam o caix?o de tampa lacrada a uma nova sala, esp?cie de anfiteatro, e o colocam sobre uma plataforma, a uns dois metros do ch?o. As coroas de flores agora foram dispostas em longa fila no solo. Os amigos e parentes sentam-se em poltronas confort?veis. Toca uma m?sica solene, com um grand finale. De uma abertura invis?vel no teto, caem p?talas de rosas de v?rias cores sobre a morta. Uma portinhola se abre automaticamente e o caix?o ? sugado para dentro de um vazio escuro como a noite. A m?sica cresce, a portinhola se fecha. Apenas as coroas de flores restam aos olhos, sozinhas, sem a homenageada. Todos aplaudem em despedida, emocionados com a cena perfeita.
Ap?s o ato final. As pessoas ganham as ruas da cidade nos seus carros de far?is acesos. A cidade traga os m?biles vivos, enquanto o cemit?rio no alto aguarda sem pressa.
Ronaldo Correia de Brito ? m?dico e escritor. Escreveu Faca, Livro dos Homens e Galil?ia.Fale com Ronaldo Correia de Brito: ronaldo_correia@terra.com.br
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