Marieta Severo, uma mulher de teatro


Deolinda Vilhena
De Salvador (BA)


Socorro e Zaninha, as carpideiras de "As centen?rias" (Foto: Nana Moraes/Divulga??o)

O fato de ter enveredado nas coxias do teatro brasileiro muito cedo, debutei aos 17 anos, fez com que muito cedo aprendesse muitas coisas. Coisas por vezes agrad?veis, por outras nem um pouco. Uma das mais s?rias e dolorosas, foi ter compreendido, antes do 20, que n?o h? nada que obrigue um grande artista a ser um grande humano. Ainda que possa parecer um paradoxo, s?o coisas completamente diferentes. Perdi a conta de quantas vezes quebrei a cara. Houve um momento em que desisti de querer uma aproxima??o dos meus ?dolos. Tudo para me proteger de eventuais decep??es. De perto ningu?m ? normal. Entretanto, toda regra tem sua exce??o e hoje vamos falar de uma dessas exce??es: Marieta Severo.

Aproveito a passagem da pe?a de Newton Moreno, As Centen?rias, dirigida por Aderbal Freire-Filho, estrelada por Marieta e Andr?a Beltr?o, pelo Teatro Castro Alves para contar aos meus leitores um pouco mais dessa atriz que conseguiu inscrever seu nome no pante?o matriarcal do teatro brasileiro.

ENTRE ELEG?NCIA, BOM GOSTO E SABEDORIA


Dame Marieta Severo (Foto: Nana Moraes/Divulga??o)

Marieta Severo ? desde sempre um nome presente em minha vida. A primeira lembran?a que tenho dela est? relacionada a minha fase de noveleira convicta. Est?vamos nos anos 60, 1966 mais precisamente, tinha euzinha apenas 7 anos, quando a ent?o novata, Rede Globo produziu O Sheik de Agadir, da Gl?ria Magadan, baseada num romance de Gogol. No elenco, al?m de Marieta, Yon? Magalh?es, Amilton Fernandes, Claudio Marzo, minha amada Leila Diniz e Henrique Martins fazendo o Sheik de Agadir e assinando a dire??o da novela em parceria com R?gis Cardoso. Marieta fazia uma princesa que n?o era s? princesa, era tamb?m uma assassina...enfim um novel?o digno de sua autora, Gl?ria Magadan. Ano seguinte Demian, o justiceiro, traz no elenco Marieta Severo ao lado de Carlos Alberto transformado numa esp?cie de Zorro e dividindo com Yon? Magalh?es, Diana Morell - uma das mais belas atrizes que conheci, dona de uma voz deslumbrante - o estrelato.

O tempo passa, o tempo voa e de garotinha virei pr?-adolescente. Nessa ?poca a Marieta passou a ser uma refer?ncia de verdade. Foi quando decidi fazer teatro e as atrizes me fascinavam. Mas ela, al?m de atriz, era a mulher do Chico Buarque de Hollanda, meu ?dolo m?ximo e uma das raras unanimidades desse pa?s. Ningu?m ? por 30 anos mulher do Chico por acaso. Tem que ser muito mulher para segurar essa onda, sem se deixar aniquilar pela figura do homem genial, marido e genro ideal no imagin?rio feminino do pa?s.

Acompanhei a saga do casal e na sequ?ncia da fam?lia. Meio que de longe porque eles sempre foram avessos ? exposi??o da vida privada. A milit?ncia pol?tica. As agress?es sofridas com Roda viva. O ex?lio for?ado. O nascimento da primeira filha, Silvinha, na It?lia. A volta para o Brasil. A carreira do Chico arrebentando e Marieta, dando um tempo na TV, fazendo teatro sempre e dedicando-se com afinco a criar as meninas, cantadas lindamente por Chico em As minhas meninas... Al?m da Silvinha, a Helena e a Luiza, sem falar na Jana?na, filha da Leila Diniz e do Ruy Guerra, que perdendo a m?e com apenas sete meses de vida encontrou em Marieta, grande amiga de Leila, a melhor heran?a deixada pela m?e.

Mas, apenas em 1977, aos 17 anos e j? trabalhando na Companhia Maria Della Costa, vi Marieta no palco pela primeira vez fazendo Os Saltimbancos. Um dos mais belos espet?culos infantis que vi na vida. Mas posso dizer que foi em 1978, que o talento de Marieta me seduziu para toda a eternidade, quando a vi no Teatro Gin?stcio fazendo A ?pera do Malandro. Depois seria uma sequ?ncia de espet?culos que s? confirmariam a grande atriz que ela ?: No Natal A Gente Vem Te Buscar, Aurora da minha vida, Um Beijo, Um Abra?o, Um Aperto de M?o, Liga??es Perigosas, A Estrela do Lar, do meu querido Mauro Rasi, Torre de Babel, do n?o menos querido Gabriel Villela, em A Dona da Hist?ria e em Quem Tem Medo de Virg?nia Woolf, quando a vi em cena pela ?ltima vez...e de repente descubro que j? l? se v?o dez anos...

Nesse meio tempo tive o privil?gio de trabalhar com uma das maiores cantoras desse pa?s - e um dos melhores seres humanos que conheci - Clara Nunes. Entre as muitas lembran?as desses dois anos passados ao lado de Clara, algumas envolvem Marieta e Chico Buarque. Relato aqui duas, ambas datam de 1982. Estava eu tranquilamente trabalhando no escrit?rio da Odara, empresa da Clara situada no segunda andar do Teatro Clara Nunes no shopping da G?vea, quando recebo uma liga??o da pr?pria. Ela estava nos est?dios da Odeon na Mena Barreto, preparando aquele que seria seu ?ltimo disco, Na??o e acabara de receber um telefonema do Chico avisando que a m?sica dela estava pronta e que ela poderia mandar busc?-la. Essazinha que vos escreve foi incumbida desse servi?o b?sico: ir ? casa de Chico Buarque pegar uma fita cassete com uma m?sica rec?m-sa?da do forno buarquiano para o vinil da Clara. Confesso que tremi. Peguei um t?xi e rumei para a casa dos Buarque, l? no alto da G?vea, n?o muito longe do teatro. Pedi ao t?xi que me esperasse, pois imaginava receber um pacote e partir. Qual nada...Fui recebida por Marieta, e informada que Chico estava falando ao telefone e viria me ver em seguida...pois ele veio, e n?o me entregou a fita. Convidou-me para ouvir a m?sica. E depois me perguntou o que eu achava...quase desmaiei de emo??o. Isso n?o ? coisa que se fa?a com uma simples mortal...A m?sica era Novo Amor. Sai de l? em ?xtase...deixando para tr?s um casal lindo como deveriam ser todos os casais do mundo enquanto unidos pelo amor.

Meses depois, em meio a primeira elei??o direta para governador depois dos anos de chumbo, Chico ? frente de v?rios artistas e em articula??o com o CEBRADE, Guguta Brand?o e companhia, organizava as viagens de apoio aos candidatos do PMDB - em Minas Tancredo, em Pernambuco Marcos Freire, em Sampa Franco Montoro, no Rio Grande Pedro Simon e vai por a?...no Rio era Miro Teixeira e ai os artistas e intelectuais fecharam com o Brizola que era PDT...e no ?ltimo com?cio Clara e Paulo C?sar Pinheiro transformaram a casa do Jardim Bot?nico, l? na Eng. Alfredo Duarte, em ponto de partida para a Cinel?ndia. V?rias pessoas passaram por l?. Mas lembro-me, como se fosse hoje, de Marieta e Chico, Angela e Jo?o Bosco. E o melhor peda?o da hist?ria. Temendo a confus?o no centro do Rio, fomos de carro at? Botafogo e de l? seguimos de metr? para a Cinel?ndia. Sim, eu j? andei no metr? do Rio com Marieta Severo e Chico Buarque, com Angela e Jo?o Bosco, e com Clara Nunes...na ?poca n?o havia nem celular nem m?quina digital para registrar um momento desse...mas a mem?ria est? ai pra isso mesmo...eu me lembro...

Voc?s podem ver que a minha queda por Marieta n?o data de hoje, mas confesso que o golpe de miseric?rdia foi dado quando mostrou seu lado mulher de teatro da maneira mais bonita poss?vel: comprando um teatro. Em 2005, ao lado da amiga e comadre, Andr?a Beltr?o, inaugurou o Teatro Poeira, em Botafogo, Rio de Janeiro. Um sonho antigo das atrizes, no qual investiram mais de 1,5 milh?o de reais, e sobre o qual passaram mais de dois anos envolvidas diretamente nas obras do antigo casar?o que abriga o teatro. Na ?poca da inaugura??o uma rep?rter perguntou a Marieta qual era a principal diferen?a entre a Marieta de 20 anos e a Marieta de hoje? A resposta dela ? linda: "aos 20 anos, achava que o teatro era a coisa mais importante do mundo e era atrav?s dele que eu conseguiria revolucionar o Pa?s e o ser humano. Hoje, de certa forma, ainda acredito em alguns desses ideais. No momento em que invisto minhas economias na constru??o de um teatro, em que dedico meu tempo e minha energia a esse espa?o, ? porque acredito no poder que o teatro tem de tocar as pessoas.". Quem faz teatro pode medir a for?a dessa declara??o.

Nos ?ltimos anos encontrei Marieta, diversas vezes, em Paris. Ora no Th??tre du Soleil, dileta amiga que ? de Juliana Carneiro da Cunha e admiradora do trabalho de Ariane Mnouchkine. Ora nas ruas da Cidade Luz, numa das ?ltimas vezes est?vamos em pleno inverno parisiense e ela desfilava sua eleg?ncia natural ao lado de Aderbal Freire-Filho na avenida do Champs Elys?es...porque Marieta al?m de tudo o que a gente falou aqui ? bem nascida, classuda e tem bom gosto...basta dar uma conferida no seu repert?rio, nos parceiros de trabalho...

Tudo isso contribuiu para fazer dela uma atriz premiad?ssima. Confiram comigo: por seu trabalho em A Estrela do Lar, conquistou o Mambembe, o Moli?re e o pr?mio Shell. Por sua atua??o em No Natal a Gente Vem te Buscar foi duplamente premiada: Mambembe e Moli?re, ambos em 1981. Al?m de ser produtora de espet?culos muito importantes, alguns inesquec?veis, contando sempre com a parceria de prestigiados diretores: Gianni Ratto, Paulo Affonso Grisolli, Jos? Celso Martinez Corr?a, Lu?s Ant?nio Martinez Corr?a, Jo?o das Neves, Ant?nio Pedro, Naum Alves de Souza, Gabriel Villela, Felipe Hirsh, Mauro Rasi, Jo?o Falc?o, Aderbal Freire-Filho e tantos outros.

Antes que digam que anunciei escrever sobre a Marieta e acabei contando a minha vida, fa?o um par?nteses para dizer que um artista muitas vezes n?o tem ideia de como sua presen?a marca a vida do seu p?blico. Assim como o p?blico n?o tem no??o disso. S? no momento de escrever essa coluna, me dei conta de quantas hist?rias a Marieta escreveu na minha vida, sem que ela mesmo saiba... e ? com muito prazer que irei aplaudi-la hoje no Teatro Castro Alves e tenham certeza de que n?o perderei a oportunidade de agradecer cada um desses momentos guardados na minha mem?ria e que, gra?as a passagem de As Centen?rias por Salvador, pude reviver. Obrigada Marieta, pela atriz extraordinariamente talentosa, inteligente e dedicada. Obrigada pelas li??es de como administrar uma carreira com bom gosto, eleg?ncia e sabedoria. Obrigada pela grande atriz que voc? ?, mas grandes atrizes existem muitas. Por isso, obrigada pelo belo ser humano que voc? ?, seres humanos belos est?o em extin??o.

AS CENTEN?RIAS EM SALVADOR


Detalhes do cen?rio (Foto: Luccas Cunha Opus)

Duas das maiores atrizes brasileiras, Marieta Severo, Andr?a Beltr?o estar?o em cena hoje no palco principal do TCA. Ao lado delas o ator S?vio Moll. Os soteropolitanos ter?o a oportunidade de descobrir as del?cias da com?dia As Centen?rias, que chega ?s terras do Senhor do Bonfim ap?s quatro anos de estrada, a estreia foi em 2007.

Enorme sucesso de cr?tica e de p?blico, o espet?culo conquistou os maiores pr?mios dedicados ao teatro no Brasil, entre eles o Pr?mio Shell (melhor atriz para Andr?a Beltr?o, melhor cen?rio e melhor autor), Pr?mio Contigo! (Melhor atriz para Andr?a Beltr?o, Melhor espet?culo de Com?dia por j?ri e voto popular e melhor autor) e Pr?mio Qualidade Brasil (Melhor atriz para Marieta Severo, Melhor Diretor e Melhor pe?a de com?dia).

Com texto de Newton Moreno e dire??o de Aderbal Freire-Filho, o espet?culo apresenta, da juventude at? a velhice, a vida das carpideiras. Socorro, experiente na profiss?o e maternal nas rela??es humanas; e sua colega Zaninha, carpideira mais nova, voluntariosa e ainda inexperiente. Amigas, as duas se apresentam ao p?blico em dois diferentes tempos: em 1921, quando se conhecem ainda jovens e come?am a amizade; e em 2006, j? velhas e cheias de causos impag?veis para relembrar e refletir.

Atrav?s de Zaninha e Socorro, Newton Moreno explora, de maneira divertida, o tema da morte, seus ritos e as personagens que a tradi??o popular evoca. Um vasto repert?rio de causos registra a dupla e importante miss?o das carpideiras dentro do ritual que envolve a morte: confortar os familiares e tentar enganar a indesejada, aplicando todo o seu saber fundado na esperteza e na dissimula??o. Dizem que s?o centen?rias, que nunca morrem porque fizeram pacto com a "Patroa". Explorando o imagin?rio popular, a pe?a ? um programa imperd?vel, e segundo B?rbara Heliodora, cr?tica do jornal O Globo "garante excelentes momentos de risadas, sem deixar de lado a reflex?o."

SERVI?O AS CENTEN?RIAS
Texto: Newton Moreno
Dire??o: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Marieta Severo, Andr?a Beltr?o e S?vio Moll
Cen?rio: Fernando Mello da Costa e Rostand Albuquerque
Figurinos: Samuel Abrantes
Ilumina??o: Maneco Quinder?
Trilha Musical: Tato Taborda
Pesquisa de repert?rio das incelen?as: Silvia Sobreira
Bonecos de cena: Miguel Vellinho / Bonecos do cen?rio: Mestre Tonho e Ivete Dibo
Quando: hoje e amanh? ?s 21h
Onde: Teatro Castro Alves - Pra?a Dois de Julho,s/n - Salvador
Quanto: R$ 80 (sex. e dom.) e R$ 90 (s?b.)
Informa??es: (71) 3117.4899
Ingressos: Filas A a P - R$ 120 / Filas Q a Z6 - R$ 80 / Filas Z7 a Z11 - R$ 60

Deolinda Vilhena ? jornalista, produtora teatral, Doutora em Estudos Teatrais pela Sorbonne e professora do Departamento de T?cnicas do Espet?culo da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia.

Fale com Deolinda Vilhena: deolindavilhena@terra.com.br

Opini?es expressas aqui s?o de exclusiva responsabilidade do autor e n?o necessariamente est?o de acordo com os par?metros editoriais de Terra Magazine.
 

Key-T. Copyright 2008 All Rights Reserved Blogger Templates by Brian Gardner Converted into Blogger Template by Bloganol dot com