A necessidade de se proteger a crian�a consumidora


Rizzatto Nunes
De S?o Paulo


Toy Fair, principal feira de brinquedos norte-americana
(Foto: Divulga??o)

N?s, adultos, em mat?ria de consumo, estamos praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz - e qualquer coisa produz... - e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas t?cnicas de ilus?o e controle. Para o adulto, o horizonte poss?vel de liberdade desse enredo de terror que nos obriga a consumir, consumir e consumir ? o da tomada de consci?ncia do processo hist?rico, que se instituiu a partir das chamadas revolu??es burguesa e industrial e que vem sendo oferecida como um projeto de liberdade. Falsa liberdade, na medida em que quase todo seu exerc?cio resume-se a adquirir produtos e servi?os cuja escolha ? limitada ?quilo que ? decidido unilateralmente pelos fornecedores.

Vamos, pois, alguns de n?s adultos, lutando contra o poder opressivo do mercado e outros nem se dando conta desse aprisionamento. Muito bem. Pergunto: ? esse o futuro que desejamos para nossas crian?as? ? esse tipo de sociedade que queremos manter para que elas vivam quando crescerem? Uma sociedade em que os indiv?duos medem-se pelo que possuem, pelo poder de compra, pelo que podem ter e n?o por aquilo que s?o?

Claro que nem toda culpa ? do mercado, mas com certeza o modelo que faz com que o cidad?o aliene-se nas compras e acredite na publicidade, o atordoa de tal modo que ele, jogado ? pr?pria individualidade, n?o sabe como agir. Vendo tev?, por exemplo, assiste-se ao mundo perfeito dos an?ncios publicit?rios: o de bancos mostrando seus gerentes sempre sorrindo e oferecendo vantagens a seus clientes, enquanto na realidade estes s?o enganados a torto e a direito, assinando contratos com cl?usulas abusivas, recebendo cobran?as de taxas absurdas, sendo obrigados a aderirem a opera??es casadas ilegais etc. H?, tamb?m, a propaganda de ve?culos maravilhosos, que nunca quebram; de telefones celulares m?gicos; de servi?os telef?nicos excelentes etc; enfim, um longo desfile de produtos e servi?os muito diferentes do real. H?, pois, dois mundos: o da publicidade e o dos fatos.

? incumb?ncia dos adultos conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe ? dirigido, para tentar desvendar as engana??es e discernir sobre o que ? v?lido e verdadeiro. Mas, refa?o a pergunta: e nossas crian?as, como est?o posicionadas nesta sociedade capitalista? Como ? que elas recebem o espetacular ass?dio do marketing e suas armas?

Eu j? tive oportunidade de comentar que tramita h? muito tempo no Congresso Nacional projeto de lei que pretende proibir ou, ao menos, limitar a publicidade de produtos e servi?os dirigida ?s crian?as e que recebeu substitutivos proibindo a publicidade e outras formas de comunica??o mercadol?gica (at? 12 anos incompletos), controlando e limitando ?quelas dirigidas aos adolescentes (de 12 at? 18 anos) ou alterando em parte as normas relativas sobre o assunto que est?o no C?digo de Defesa do Consumidor (art. 37).

Certamente, a limita??o ou o at? mesmo o fim da publicidade de produtos e servi?os dirigida ?s crian?as e adolescentes seria recebido como uma d?diva pelos milh?es de m?es e pais que lutam duramente para a manten?a de suas fam?lias e sofrem com o ass?dio dessas ofertas.

Vejo que alguns parlamentares t?m gasto um bom tempo com projetos pol?micos e duvidosos, com o argumento de que eles beneficiariam as crian?as*. N?o seria, ent?o, o caso de nossos representantes debru?arem-se sobre projetos s?rios como o que acabei de referir? Seria um belo trunfo pol?tico, n?o? Mas, enquanto isso n?o vem (se ? que vir?), cabe aos pais o dever de vigil?ncia.

? verdade que muitos desses pais j? foram absorvidos por todas as formas de consumo e, inclusive, utilizam-se do pr?prio mercado para controlarem seus filhos, o que ? uma pena. N?o que seja simples. Ainda que, por exemplo, os pais tenham o costume de limitar a exposi??o de seus filhos ? tev?, basta um pouco para a percep??o do ataque (uma verdadeira guerra de an?ncios invade a sala ou o quarto em poucos minutos!). E, se o filho tem seu uso de internet limitado, ? suficiente tamb?m apenas algum tempo de navega??o para estar sujeito a uma explos?o de ofertas.

E, se n?o bastasse isso, h? toda a sedu??o do merchandising feito em programas de tev?, filmes de cinema, v?deo e at? teatro infantil nacional ou importado, o apelo dos colegas de escola, dos parentes, das lojas nos shopping-centers, pois, afinal, vive-se na cidade entre as demais pessoas, o contato ? inevit?vel e n?o h? mesmo nada de errado em frequentar shoppings, cinemas, teatros, viajar, assistir tev? etc. Isso tudo, digamos assim, no campo das ofertas l?citas. Mas, existe tamb?m uma enormidade de campanhas e an?ncios enganosos e abusivos dirigidos diretamente ?s crian?as. Veja.

No excelente document?rio dirigido por Estela Renner intitulado "Crian?a, a alma do neg?cio", h? v?rios flagrantes de enganosidade e abusividade. Num deles, acontece mais ou menos o seguinte: quatro meninas aparentando entre 5 e 8 anos vendem produtos indicando o que seria mais "descolado", mais "bacana".

Elas usam a express?o "fashion". A primeira, mostrando uma sand?lia e depois dan?ando, diz: "Fashion ? se produzir". Uma outra, mostrando uma bolsa, diz: "Fashion ? ter muitos amigos" e depois pega um celular e finge conversar. Uma terceira ensina: "Fashion ? ouvir aquele som que a gente gosta" e coloca um fone de ouvido e passa a dan?ar. Bem, aparentemente nada grave at? a?. Por?m, a quarta menina, a mais nova, diz "Fashion ? brincar". Nesse instante as demais em tom de cr?tica olham para ela e gritam: "O qu?!!??". Digo eu: o qu?? Crian?a que quer brincar est? errada?

O problema da publicidade em geral dirigida ?s crian?as e tamb?m da publicidade enganosa e abusiva ? que elas criam um jogo sujo colocando as crian?as (isto ?, os filhos) contra os pais. Estes, inseridos nesta sociedade capitalista - e tamb?m eles, como acima referi, sujeitos aos est?mulos, malandragens e manipula??es do marketing - entram nesse jogo sem perceber e muitas vezes por se sentirem culpados. Alguns pais trabalham o dia inteiro e t?m pouco tempo livre para dedicarem aos filhos; outros procuram propiciar aos filhos o que nunca tiveram - o que n?o ? raro, porque a maior parte dos produtos e servi?os existentes atualmente n?o existiam na inf?ncia dos pais e com a produ??o em massa muitos deles tornaram-se acess?veis e n?o eram outrora. Pressionados pelos filhos, os pais compram e d?o os produtos (no document?rio de Estela Renner, v?-se como muitos pais endividam-se para comprar simples produtos descart?veis e/ou que s?o descartados pelos filhos depois de pouco uso).

Desse modo, as crian?as v?o sendo inseridas no mundo capitalista dos produtos desnecess?rios muito prematuramente e tamb?m v?o perdendo a inf?ncia antes da hora. Como observa a educadora Claudia Calmon, com toda raz?o: a rela??o de pais e filhos passa a ser intermediada por objetos - produtos adquiridos com sacrif?cio ou n?o. Se for com sacrif?cio, acresce-se ? intermedia??o feita pelo objeto o sentimento de culpa. As crian?as, de seu lado, aprendem a se relacionar pedindo coisas e os dois lados trocam muitas vezes a aten??o e o carinho por produtos.

E, h? mais (muito mais). Certa vez, um an?ncio de tev? de um boneco o colocava voando em cena. Em baixo, em letras min?sculas e rapidamente, aparecia: "Meramente ilustrativo". Quer dizer, o boneco n?o voa de verdade. A crian?a v? o an?ncio e com quatro, cinco anos, nada l?, evidentemente. O pai compra o brinquedo e a crian?a frustrada percebe que ele n?o voa. Da? culpa o pai. Diz que ele comprou o boneco errado. Ora, o que este pode fazer? Como ? que ele explica as notas de rodap? do an?ncio? N?o consegue. E o conflito instaurado n?o tem solu??o.

Repito: N?o ? mesmo f?cil para os pais lutarem contra tudo isso. E, at? que o legislador colabore, a dif?cil li??o de casa precisa ser feita.

Cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. ? preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisi??o da maior parte das bugigangas que s?o oferecidas; ? salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crian?as, com os pr?prios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte de seus produtos.

? comum que as crian?as que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem da maior parte deles. Pode ser um bom precedente para mostrar a desimport?ncia de ter muitas coisas ao mesmo tempo. E, evidentemente, cabe aos pais dizer n?o. A crian?a pode at? se frustrar, mas ser? por algo v?lido, uma boa experi?ncia que ela levar? consigo, pois na vida adulta ela perceber? que a frustra??o ? um elemento comum no jogo social.

Os pais s?o, pois, os primeiros respons?veis por alertar seus filhos contra o ass?dio feito pelo marketing infantil hoje t?o sofisticado e difundido. Cabe a eles, desde logo, ensinar aos filhos como se deve decidir para comprar produtos e servi?os. Qual deve ser a fun??o do produto, seja ele um brinquedo ou uma roupa. Que se deve compr?-los sem exagero. As crian?as, se pudessem, agradeceriam as li??es.

Para terminar, quero indicar para quem tiver interesse o site de uma associa??o que faz um ?timo trabalho na defesa dos direitos das crian?as consumidoras Chama-se Instituto Alana Visite que vale a pena.

* Falo da tentativa de aprova??o da chamada lei da palmada, que pretende coibir que os pais recorram a recursos f?sicos m?nimos na educa??o dom?stica. Consigno, desde logo, que n?o h? que se confundir conten??o f?sica a restri??es disciplinares muitas vezes necess?rias com surras e a viol?ncia f?sica j? regulada de h? muito pela legisla??o penal p?tria.

Rizzatto Nunes ? mestre e doutor em Filosofia do Direito e livre-docente em Direito do Consumidor pela PUC/SP. ? desembargador do Tribunal de Justi?a de S?o Paulo. Autor de diversos livros, lan?ou recentemente "Superdicas para comprar bem e defender seus direitos de consumidor" (Editora Saraiva) e o romance "O abismo" (Editora da Pra?a).

Fale com Rizzatto Nunes: rizzattonunes08@terra.com.br

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