Morre Abdias do Nascimento, o "�nico negro brasileiro"


Ricardo Stuckert/PR/Ag?ncia BrasilAbdias do Nascimento, pioneiro do movimento negro, ? homenageado pelo presidente Lula Abdias do Nascimento, pioneiro do movimento negro, ? homenageado pelo presidente LulaClaudio Leal

O ?nico negro brasileiro, pois n?o. Abdias Nascimento surgia nas cr?nicas hiperb?licas de Nelson Rodrigues como um militante irredut?vel, capaz de esfregar "a cor na cara de todo o mundo", numa solit?ria consci?ncia racial. "N?o conte com o Brasil, n?o conte com o brasileiro", desaconselhou Nelson, ao v?-lo colher apoio para um movimento contra o apartheid na ?frica do Sul, em 1968. "Somos n?o sei quantos milh?es!", reagiu Abdias. Naquele tom de esp?rito de porco, mas comprometido com o incipiente movimento negro, o dramaturgo enunciou o ?bvio ululante: "Abdias, s? h? um negro, que ? voc? mesmo. N?o milh?es, voc?, Abdias, s? voc?".

Abdias morreu nesta ter?a-feira (24/05), aos 97 anos, no Rio de Janeiro, sem jamais ter deixado de denunciar as pervers?es sociais da escravid?o: "H? preconceito racial no Brasil", repetia at? nas mais discretas oportunidades. Fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, ele ajudou a constranger o racismo nos palcos brasileiros, tirando a tem?tica negra das coxias, acompanhado por artistas como Ruth de Souza, Santa Rosa e Milton Gon?alves. O TEN encenou Eugene O'Neill (Todos os Filhos de Deus T?m Asas), L?cio Cardoso (O Filho Pr?digo) e Joaquim Ribeiro (Aruanda), al?m de editar o jornal Quilombo, o bra?o editorial que aprofundava o debate te?rico sobre o negro brasileiro, com colabora??es de etn?logos do n?vel de Guerreiro Ramos, Arthur Ramos e ?dison Carneiro.

Era um extraordin?rio provocador. O Concurso de Artes Pl?sticas, com o tema do "Cristo Negro", atraiu as promessas de inferno da Igreja Cat?lica. Nelson Rodrigues inspirou-se no amigo para escrever a pe?a "Anjo Negro", mas frustrou-se seu velho desejo, n?o conseguiu lev?-lo a interpretar um dos protagonistas. A fixa??o do escritor vingou em "Perdoa-me por me tra?res", na qual Abdias interpreta o deputado Jubileu de Almeida. Este nome pomposo veio de uma brincadeira onom?stica do psicanalista H?lio Pellegrino; para o "Homero do Sub?rbio", "jubileu" estava mais para o nome de um deputado. Se quer saber, o jubiloso parlamentar s? eri?ava a sua juba quando uma mulher o chamava de "reserva moral da Na??o!".

Abdias n?o dispensou atropelos em outras personalidades essenciais para a valoriza??o das contribui??es do negro ? cultura brasileira; talvez por vaidades arranhadas ou radicalismos infundados. ?s v?speras da 2? Confer?ncia de Intelectuais da ?frica e da Di?spora (Ciad), realizada em 2006 na capital baiana, fui pautado pela brilhante rep?rter Cleidiana Ramos, editora do blog "Mundo Afro" do jornal A Tarde, para ouvi-lo sobre a homenagem que seria prestada a sua milit?ncia pioneira no Brasil.

Perto do fim da conversa, naquela altura em que entrevistado e entrevistador parecem exaustos do confession?rio, saiu-me, por algum diabo, o nome de Pierre Verger (1902-1996), o fot?grafo e etn?logo franc?s radicado em Salvador, autor do cl?ssico estudo "Fluxo e Refluxo do tr?fico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos". Verger, Jorge Amado, Caryb? e Dorival Caymmi integram o conselho de deuses da Roma Negra. "Era um canalha!", revidou Abdias, do outro lado da linha, como um personagem rodrigueano vocacional. "Era um canalha. Eu via como os negros se curvavam diante de Verger. Se os negros brasileiros tivessem vergonha na cara, escarravam na cara dele!", completou, ? beira de cumprir a sugest?o, num imagin?rio torneio de cuspe ? dist?ncia.

O "?nico negro" exerceu por duas vezes o mandato de senador, sob a lideran?a pol?tica de Leonel Brizola, no PDT. Por sobreviver ao s?culo 20, Abdias alcan?ou conquistas impens?veis na d?cada de 40, ainda que nunca tenha admitido a exist?ncia da t?o surrada democracia racial. Mas poderia comemorar as cotas para negros nas universidades, um teatro menos euroc?ntrico, o triunfo de jogadores como Pel? e Didi, a criminaliza??o do racismo, a liberdade de culto do Candombl?, a lideran?a de Nelson Mandela na ?frica do Sul e a recente vit?ria de Barack Obama nos Estados Unidos.

"Acompanhei a luta dele (Obama), sofri com o que ele deve ter sofrido nessa campanha. N?o foi uma coisa f?cil. E o desassombro de ver um negro liderar no mundo. No Brasil, que tem essa fama toda de democr?tico, me lembro como fui esmagado quando fui senador", remoeu Abdias, em entrevista a Terra Magazine. Em mar?o de 2011, numa cadeira de rodas e com sua bata africana, ele compareceu ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, ansioso pelo primeiro discurso de Obama aos brasileiros. A ansiedade de quem ia ? pr?-estreia de uma pe?a sempre adiada pelo Teatro Experimental do Negro - e pelo Brasil.

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