De Salvador (BA)Moral da hist?ria: O capitalismo cultural exercita sua habilidade
No sil?ncio, sem TV: flashes de tudo me azucrinam. Cortei o servi?o a cabo, estou com s?ndrome de abstin?ncia. Era v?cio. Diversas coisas se alinham na mem?ria, ligam e desligam. Imagine s?, Carlos - o vigilante rodovi?rio da d?cada de 1960! Zap! Hebe e Gabriela, oh vida! Zap! Aloprado ingl?s cozinhando, esse rapaz tempera tudo com afoba??o. Zap! Um carro explodiu. Zap! Militares ninjas est?o cercando uma casa. Zap! Sexo misturado com Viol?ncia. Zap. Humor americano (contradi??o nos termos?). Zap! Persegui??o na estrada. Zap! Finalmente uma orquestra - e est? executando Brahms, mas que chatice, tem-um-sujeito-irradiando-o-concerto, dizendo o que devo ouvir, e como: "ou?am a clarineta nesse segundo tema, bel?iissimo". Zap! A queda dos juros. Zap! Transe religioso! Cadeiras vazias no Congresso. Massagens er?ticas. As mulheres do Curdist?o. A vida selvagem do Alaska. O crocodilo abocanhou a zebra pelo pesco?o. Que pena! A mulher amassa os seios gigantes querendo ser irresist?vel. Zap! Hora de entender tudo sobre cremes hidratantes.
Com que realidade o mundo ? sonho!
Eu cantarei de amor t?o docemente...
Meninas de bicicleta, que fagueiras pedalais, quero ser vosso poeta...
Ningu?m pode saber que ? que tu sonhas, nem tampouco tu sabes...
E, no entanto, a vida ? um milagre.
A mem?ria ? um milagre. Tudo ? milagre. Zap!
Chega de saudade.
J? experimentou essa posi??o? Tudo sobre sexo. Lubrifique bem. Pr?xima pergunta... Voc? deve decidir se est? ou n?o disposta a aceitar que ele fa?a xixi em voc?. Dog style. Pode sim causar infec??o. Tem uns aparelhinhos maravilhosos, eu recomendo este daqui!
Agora come?ou uma guerra. Os correspondentes j? est?o sendo acionados. Mandam not?cias pelo telefone, mas logo estar?o ao vivo. Tanques invadem o territ?rio inimigo. Quem ? mesmo que est? na linha do mal? Zap! Manifesta??es de jovens contra a globaliza??o. Os soldados usam escudos transparentes. Vai come?ar o quebra-quebra. Zap! Remodelagem total. Cirurgia radical. Nem o marido conhece quando a fulana retorna. Voc? n?o sabe se vestir, com o tamanho do traseiro que tem, devia usar isso! Zap. Fora com essas gorduras criminosas. Voc? ? um enfarte ambulante.
Trezentas pessoas vestidas como Capit?o Kirk ou como Spock, exercendo seu direito e mania de serem 'guerra nas estrelas': "N?o estamos fazendo mal a ningu?m, voltamos pra casa pacificamente". Est?o em todos os lugares: S?o Paulo, Fran?a, Austr?lia. A francesa diz revoltada que l? eles n?o tem espa?o, pois as pessoas n?o consideram isso 'cultural'. Vive la France! Numa cidadezinha americana uma delas foi participar de um J?ri, vestida de 'guerra nas estrelas'. A coisa esquentou. J? em Vars?via, depois da Lista de Schindler, surgiu um curioso roteiro tur?stico: conduz os visitantes ao lugar onde 'o menino gordo' foi espancado e caiu! ? o filme que faz a cidade. Na Bol?via, todos querem ver o lugar onde Guevara foi morto.
Hora de entender tudo sobre cremes faciais. A vida dos famosos. Os trejeitos s?o muito mais importantes que as ideias. Vivemos num mundo de muitos trejeitos e poucas ideias. Inunda??o no sul da ?ndia. Uma not?cia em espanhol. A mesma em alem?o. Agora o sotaque ? brit?nico. Pelo menos, os italianos t?m uma fanfarronice que os distingue. Todos falam ao mesmo tempo. Ser? que ? pela via da It?lia que vem a deseleg?ncia discreta de nossas meninas? Enquanto isso, Rita Lee posa de Brigitte Bardot, levanta bruscamente a blusa pra mostrar dois seios enormes, de borracha. Moleca, hil?ria, consegue entrar no jogo e ao mesmo tempo sinalizar o seu ponto de rid?culo.
Moral da hist?ria: O capitalismo cultural exercita sua habilidade aparentemente inesgot?vel de indexa??o imagin?ria do mundo, e da vida. O resultado tem jeito de libera??o, mas tamb?m parece algo da ordem de uma depend?ncia qu?mica paralisante, o v?cio da informa??o fragmentada como divertimento, gerando bilh?es de d?lares em algum lugar do planeta. Todas as fantasias escancaradas s?o tamb?m produtos, com etiqueta e tudo. Qual o limite do processo? Ser? que ? poss?vel mesmo manter um mundo sem causas? Ultrapassar tudo isso em nome do espet?culo? Num mundo sem causas a quem devo obedi?ncia civil? Ao apresentador mais comunicativo? Se tudo funciona como se estiv?ssemos num grande fast-food de informa??o, o que seria mesmo a realidade? Morreu? Talvez fosse melhor voltar ao mundo da poesia, onde as fantasias apareciam com todo o cuidado da forma:
Farei que amor a todos avivente, pintando mil segredos delicados... Meninas soltai as al?as, bicicletai seios nus!
A crian?a que pensa em fadas e acredita nas fadas, sabe como ? que as coisas existem, que ? existindo.
N?o faz mal. Flui, para que eu deixe de pensar.
PS - Obrigado Cam?es, Vinicius, Drummond, Bandeira e Pessoa.
Paulo Costa Lima ? compositor. Bacharel e Mestre (University of Illinois), Doutor (USP e UFBA). Professor de Composi??o e An?lise - UFBA. Pesquisador-CNPq. Membro da Academia de Letras da Bahia. Apresenta??es de sua obra musical (em 2010) incluiram festivais no Brasil, China, Su?cia, Estados Unidos e Fran?a. Outras informa??es: www.paulocostalima.wordpress.comFale com Paulo Costa Lima: paulocostalima@terra.com.br Opini?es expressas aqui s?o de exclusiva responsabilidade do autor e n?o necessariamente est?o de acordo com os par?metros editoriais de Terra Magazine.