Rastros na noite


Amilcar Bettega
De Lisboa

J? n?o sei se ? sonho, ou lembran?a de um sonho, ou se li no livro que repousa sobre o criado-mudo e que todas as noites, antes de cair no sono, eu leio. Sei apenas que h? uma tartaruga (no sonho, ou na lembran?a dele, ou no livro), uma tartaruguinha min?scula, dessas que cabem na palma da m?o de uma crian?a. Sei que h? um piso frio (lajota ou uma pedra imitando m?rmore) por onde ela desliza sua barriga amarelo-p?lido, empurrada por uns pezinhos fr?geis que lutam contra a falta de atrito do piso.

Sei, mas n?o vejo, ? claro.

O que vejo (ou ? ainda o sonho, ou a lembran?a do sonho, etc?) ? o seu rastro no piso pela manh?. Como se uma gosma se soltasse (? poss?vel que seja exatamente isso) deixando as marcas no piso, um rastro luzidio, meio molhado, como o rastro das lesmas. Sei que ela faz isso (que ela sai de noite de sua bacia com ?gua no canto da cozinha) porque tem fome, ela consegue (n?o sei como) subir at? a borda da bacia e se deixa cair do outro lado, no piso duro e frio da cozinha, e peregrina durante a noite inteira em busca de comida.

De manh?, damos-lhe comida, umas casquinhas feitas com farelo de peixe que ficam boiando na superf?cie da ?gua at? que ela saia do seu sono e, com movimentos curtos do pesco?o que lembram o de uma galinha, as abocanhe. E depois disso, creio, ela volta a dormir. Vai dormir o dia inteiro, vai ficar como morta sob a ?gua (? assim que a vejo sempre), im?vel, fossilizada, junto a umas pedrinhas que meu filho recolheu no jardim e jogou ao acaso dentro da bacia.

E depois eu me esque?o, vou fazer outras coisas, j? nem me lembro que ela existe. O dia passa assim. At? que tudo recome?a, ou seja, vem a noite, vou me deitar, pego o livro, vem o sono e a?, em algum momento antes de despertar, j? de manh? (ou um pouco antes, ? dif?cil precisar), os rastros da tartaruga no piso da cozinha tornam-se "fortes" demais. Isto n?o diz nada, ? claro, mas ? exatamente isso: tornam-se muito fortes, muito evidentes, muito vis?veis, eu poderia dizer. A ponto de me despertarem. Depois, quando j? estou de fato desperto e vou at? a cozinha e vejo de fato os rastros no piso, vejo que os que eu tinha "visto" antes estavam dentro de um sonho (ou de algo parecido com isso).

Tem tamb?m o livro. Ele est? sempre ali no criado-mudo e invariavelmente eu me adorme?o lendo um trecho dele. De manh?, quando acordo (pensando no rastro deixado pela tartaruga no piso da cozinha, ou quando sou acordado por este pensamento), o livro est? de novo pousado sobre o criado-mudo, sem que eu jamais consiga lembrar o momento em que, um segundo antes de dormir, eu o tenha fechado e posto em cima do criado-mudo. S?o coisas que se fundem: o livro, a leitura, o sono, o sonho, a tartaruga, seus rastros no piso da cozinha.

Por isso que de uns tempos para c? comecei a pensar na hip?tese de a tartaruga estar querendo dizer alguma coisa. Foi quando comecei a copiar em uma folha de papel, em cujo cabe?alho eu ponho a data, os trajetos feitos pela tartaruga naquela noite. S?o desenhos curiosos, ora pr?ximos de figuras, ora mais parecidos com letras escritas num alfabeto a ser ainda descoberto. At? agora n?o houve repeti??o exata de um trajeto, mas alguns s?o bastante semelhantes, enquanto outros diferem inteiramente entre si. N?o sei se posso esperar alguma mensagem cifrada nessas folhas que j? come?am a se acumular de forma assustadora ao lado da minha cama (deixo-as l? para poder estud?-las quando estou deitado, antes de pegar o livro). Um dia terei que me ocupar delas. Mas se a tartaruga continua a deixar suas marcas durante a noite? E eu a copi?-las? Isso pode ser uma coisa sem fim! ?s vezes penso que a tartaruga est? de fato morta e eu n?o vou mais precisar, a cada manh?, refazer no papel os seus tra?os. Mas a? ela faz aquele movimento com o pesco?o e abocanha uma casquinha de comida. E volta para a sua imobilidade. Que vai durar at? a madrugada, quando ent?o no sil?ncio absoluto da casa toda adormecida, ela volta a se movimentar, a arrastar-se sobre o piso frio da cozinha deixando essas marcas, esses tra?os, vest?gios de algo que eu copio com a esperan?a - bastante vaga, ? verdade - de um dia poder olhar para a aquilo e sentir que me acalmo um pouco.

Amilcar Bettega ? escritor, autor de O v?o da trapezista, Deixe o quarto como est? e Os lados do c?rculo(livro vencedor do Pr?mio Portugal Telecom de Literatura Brasileira em 2005).
Fale com Amilcar Bettega: amilcar.bettega@terra.com.br Opini?es expressas aqui s?o de exclusiva responsabilidade do autor e n?o necessariamente est?o de acordo com os par?metros editoriais de Terra Magazine. "Tem tamb?m o livro. Ele est? sempre ali no criado-mudo e invariavelmente eu me adorme?o lendo um trecho dele"
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