Os 70 anos de Cidad�o Kane


Orson Welles carregou o estigma de estrear com uma obra-prima Orson Welles carregou o "estigma" de estrear com uma obra-primaAndr? Setaro
De Salvador (BA)

Cidad?o Kane, de Orson Welles, completa em 2011 70 anos de exist?ncia. Revi o filme na semana passada e constatei a sua plena atualidade. Parece que foi feito ontem. N?o se pode imaginar o impacto na ?poca de seu lan?amento, porque Cidad?o Kane lan?ou os postulados do cinema moderno, sendo o seu ponto de partida. A sua avant-premi?re aconteceu no majestoso New York City, em Nova York, em 1 de maio de 1941, mas o filme somente foi lan?ado oficialmente nos Estados Unidos em 5 de setembro do mesmo ano, cinco meses depois. Por incr?vel que pare?a, estreou antes no Brasil, em 16 de junho de 1941. Na Fran?a e em alguns pa?ses europeus, o lan?amento de Cidad?o Kane demorou cinco anos. Os franceses, por exemplo, tomaram conhecimento da obra-prima de Orson Welles em 1946, porque, durante a Segunda Guerra Mundial, houve a proibi??o da importa??o de filmes oriundos dos Estados Unidos. A coluna presta hoje homenagem a este grande momento da hist?ria do cinema.

Nas mais recentes pesquisas, para se saber qual o maior filme de todos os tempos (a recente da inglesa Empire, que escolheu O poderoso chef?o, apenas registra opini?es de aficionados), Cidad?o Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, encontra-se sempre em honroso primeiro lugar. Qual o fasc?nio que exerce este filme atrav?s dos tempos, incapaz de ser tirado do topo de todas as listas? Estr?ia de Orson Welles no cinema, o qual, antes, somente fizera uma curta metragem, Citizen Kane ? considerado o ponto de partida da linguagem do cinema contempor?neo. Havia "um" cinema antes de "Kane", e, "outro", renovado, depois deste filme.

Curiosamente, no entanto, lan?ado no Brasil em 1941, levou 15 anos sem ser apreciado, desaparecido das telas, at? que uma iniciativa do cr?tico Antonio Moniz Viana, numa retrospectiva do cinema americano, colocou-o, de novo, ? vista de uma nova gera??o, que o viu admirado, ou mesmo estupefato (como conta Jos? Lino Grunewald em Um filme ? um filme, antologia organizada por Ruy Castro e editada pela Companhia das Letras, de seus escritos na imprensa).

Em 1968, a revista Filme/Cultura (que est? novamente em circula??o), numa ampla enquete entre os cr?ticos brasileiros, para eleger o melhor filme da hist?ria, l? estava Cidad?o Kane como o mais cotado, o mais apreciado, em primeir?ssimo lugar. O filme, que tem excelente c?pia em DVD da Warner (h? uma esp?ria, da Continental), permanece atual, vibrante, como se tivesse sido feito no ano em curso.

O filme come?a no momento da morte de Charles Foster Kane, magnata de imprensa que Welles, segundo se conta, inspirou-se num verdadeiro e poderoso: William Randolph Hearst. Um cine-jornal, no estilo bomb?stico da ?poca, March of time conta a vida dele desde o nascimento at? o seu desenlace. De modo que a hist?ria, que se possa pensar encontr?-la durante o desenvolvimento da narrativa, j? ? dada em linhas gerais. Findo o filme de atualidades, que jornalistas est?o a v?-lo, numa cabine da reda??o, e um deles, intrigado com a ?ltima palavra pronunciada por Kane no leito, "Rosebud", acha que precisa ser investigada. O que significaria "Rosebud"?

Um jornalista ? ent?o encarregado de descobrir o enigma e sai para entrevistar as pessoas que conviveram com o magnata desaparecido. A sua vida vai se reconstruindo atrav?s dos testemunhos daqueles que a compartilharam. As mem?rias de Thatcher evocam a sua inf?ncia junto a sua m?e (Agnes Morehead) e as do velho Bernstein (Everett Sloane) contam como ele dirigia o peri?dico e, como este veio a provocar a guerra de Cuba. Leland (Joseph Cotten), outro amigo e companheiro, que narra o matrim?nio de Kane com a sobrinha (Ruth Warrick) do presidente dos Estados Unidos, seus amores com uma jovem (Dorothy Comingore), com a qual volta a se casar (a primeira morre em acidente), e, finalmente, o fracasso do magnata como candidato ? presid?ncia de seu pa?s.

Os depoimentos recolhidos pelo rep?rter s?o narrados em flash-backs. Quando este entra na biblioteca de Thatcher, o cen?rio grandioso revela em Welles a forte influ?ncia do expressionismo alem?o, principalmente no que se refere ? pl?stica da imagem (a luz, surpreendentemente forte, a configurar o pr?prio d?cor, a desenhar seus contornos gigantescos, assim como suas figuras e a pontua??o da m?sica - de Bernardo Herrmann -, os cortes abruptos). ? magistral o plano no qual aparecem as letras do di?rio que est? a ser lido pelo rep?rter e, num travelling, elas, as letras, se transformam, de repente, no menino Kane a brincar na neve. Outro plano sublime, quando Kane est? em Xanad?, ? o do quebra-cabe?a que a sua esposa tenta montar, a colocar suas pe?as, ess?ncia do pr?prio filme, significa??o, pois o trabalho do rep?rter se assemelha a isso justamente: a montagem de um quebra-cabe?as constitu?da pelos depoimentos em flash-backs.

Cidad?o Kane ? um puzzle, portanto. E o rep?rter prossegue na sua busca pelo significado de Rosebud, a entrevistar, em seguida, Susan, a cantora de ?pera, que fala dos esfor?os extenuantes de Kane para convert?-la numa cantora l?rica de sucesso, ainda que sua falta de talento, mas, para ele, uma id?ia fixa a ponto de lhe construir um teatro, e a retirada do conv?vio social no ex?lio em Xanad?, seu fracasso no casamento, mas nunca a aparecer a palavra Rosebud.

Mas o espectador, e somente ele, saber?, ao final, o significado de Rosebud: ? a inscri??o que figura num velho tren? que Kane possu?a em sua inf?ncia. Mas a significa??o do filme n?o se encontra na decifra??o desse enigma, uma pista falsa dada por Welles para aqueles que procuram, ansiosos, por "mensagens". O puzzle ou, melhor, o quebra-cabe?as montado, pulveriza a estrutura narrativa em diversos pontos de vistas e determina uma desestrutura??o da temporalidade, do tempo cinematogr?fico, ao qual n?o estavam acostumados os espectadores da ?poca. N?o h? nessa estrutura uma intensidade dram?tica nos moldes do cinema cl?ssico de ent?o, mas ela se desintegra nos pontos de vista dos depoentes. O fato ? que, como puzzle que ?, Citizen Kane tem sua significa??o maior nos dois travellings, um no in?cio, e outro, no fim, iguais, que mostram a grade de ferro do port?o de Xanadu com a inscri??o "N?o ultrapassar", como a dizer que a ningu?m ? dado adentrar na personalidade de um homem, amb?guo e complexo como o magnata retratado.

Trata-se, na verdade, de uma obra de enorme complexidade, quer em seu relato, quer em rela??o ?s t?cnicas empregadas. Neste sentido, s?o c?lebres e antol?gicos os cen?rios com teto baixo (a agigantar os personagens em cena) e a profundidade de campo, obtida gra?as ao emprego de procedimentos inventados pelo genial diretor de fotografia Gregg Toland. No que se refere ao relato em si, encontra-se uma inteligent?ssima utiliza??o do flash-back, que permite dar, quando o caso o requer, distintas vers?es de um mesmo acontecimento, segundo a ?tica de quem o relata.

Realizado com inteira liberdade, Cidad?o Kane n?o d?, em nenhum momento, a impress?o de ser uma obra de estr?ia. Welles, ali?s, carregaria o "estigma" pelo resto da vida, assim como outros cineastas que realizam uma obra-prima de primeira, a exemplo, aqui no Brasil, de Rog?rio Sganzerla, cujo O bandido da luz vermelha foi-lhe cobrado pela vida afora. Pela modernidade de seu estilo, Kane n?o logrou ser compreendido pelo p?blico americano de seu tempo, ainda que a cr?tica o tenha acolhido entusiasticamente. Por outro lado, o p?blico europeu n?o o conheceu devido ?s circunst?ncias hist?ricas do momento (a Segunda Guerra Mundial). O que determinou que a RKO, que havia acolhido de bra?os abertos o rec?m-chegado enfant terrible, modificasse sua atitude e interviesse na montagem de Soberba (The magnificent Ambersons, 1942), seu filme seguinte.

Pode-se assegurar que o cinema contempor?neo n?o seria o que ? se Orson Welles n?o houvesse realizado Cidad?o Kane.

Andr? Setaro ? cr?tico de cinema e professor de comunica??o da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Fale com Andr? Setaro: andre.setaro@terra.com.br

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